11 de março de 2021

Crimes e Suicídios: A Violência Hard

O mundo hard é jovem e toca em primeira linha os desenraizados culturais, as minorias raciais, imigrados e filhos de famílias imigradas. A ordem do consumo pulveriza muito mais radicalmente as estruturas e personalidade tradicionais do que o pôde fazer a ordem racista colonial: doravante o que caracteriza o retrato do “colonizado” é menos a inferiorização do que uma desorganização sistemática da sua identidade, uma desorientação violenta do ego suscitada pela estimulação de modelos individualistas eufóricos que convidam a viver intensamente. Por toda a parte, o processo de personalização desmantela a personalidade; no jardim da fachada, temos a dispersão narcísica e pacífica; nas traseiras, a explosão energúmena e violenta. A sociedade hedonista produz sem dar por isso um composto explosivo quando se imbrica, como é aqui o caso, num universo de honra e de vingança à deriva. A violência dos jovens excluídos em razão da cor ou cultura é um patchwork, resulta do choque entre o desenquadramento personalizado e o enquadramento tradicional, entre um sistema à base de desejos individualistas, de profusão, de tolerância e uma realidade quotidiana de ghettos, de desemprego, de desocupação, de indiferença hostil ou racista. A lógica cool prossegue por outros meios o trabalho plurissecular da exclusão e da relegação; não já através da exploração ou da alienação decorrente da imposição autoritária das normas ocidentais, mas através da criminalização.

A este título, a violência hard, desesperada, sem projecto, sem consistência, incarna a imagem de um tempo sem futuro que valoriza o “tudo”, e “já”; longe de estar em antinomia relativamente à ordem cool e narcísica, é a sua expressão exasperada: a mesma indiferença, a mesma dessubstanciação, a mesma destabilização, o que se ganhou em individualismo perdeu-se em saber-fazer, em ambição, mas também em sangue-frio, em controlo de si próprio. Hoje, o crime hard exibe-se em pleno dia, no coração da cidade, indiferente às horas e aos lugares, como se o crime se esforçasse por participar na pornografia do nosso tempo, a da visibilidade total. Na esteira da desestabilização geral, a violência deslastra-se do seu princípio de realidade, os critérios do perigo e da prudência esbatem-se, inicia-se assim uma banalização do crime reforçada por uma subida descontrolada aos extremos no emprego dos meios violentos.

Gilles Lipovetsky, in “A Era do Vazio” - Ensaio sobre o individualismo contemporâneo

26 de março de 2018

Rabiscos num Caderno

Na idílica paisagem do deserto
as chamas afagam a memória
da sumptuosa sede
de te amar

Perscruto na melopeia ociosa
do sonho
a férrea vontade do abraço
Carcomida memória
serena
a ternura do beijo inquieto
e dar-te asas para voar
é mais perene
que a vida

Malvadez da memória!
A inquieta diatribe do momento
Percorrer lugares da imaginação
e deixar-te sozinha
na margem da alegria

Reconheço-te na transparência
no sorriso diáfano do teu olhar
E juntos, calcorreamos a vida
em doses maciças da paixão

Alucinada paixão dos afectos
dos dias e dos lugares
Deixa-me aninhar-me no teu corpo
suave, enérgico
e doce

Termino agora com um sorriso
Pétalas horárias
Na suprema hora
do amor

21 de março de 2018

Poesia?

Poesia?
Que se foda a poesia
o teatro e todos os livros

Eles nunca me ensinaram
a morrer
nem a crescer saudável

A arte não serve para nada
a poesia só me consome
por dentro
e rói, rói
como bicho álacre
e sedento

E eu fico num pranto
por nunca ter escrito
um poema esdrúxulo

Por isso
abomino a poesia
e o amor
e a saudade
e o calor

das fonéticas apetecíveis
dos ditongos exagerados
do silabar dos teus lábios
dos vocábulos enamorados

Não, poesia
não me vais vencer
vou-te jogar
na sarjeta do esquecimento

E partir, sem norte
rumo ao torpor
da aldeia mais esconsa

Para morrer em paz

20 de março de 2018

Em busca de Amor

Sinto sempre o amor a esvair-se-me dos dedos
escorrendo goela abaixo até se enlamear na minha loucura
Falta sempre algo, despudoradamente apócrifo e insalubre
O amor não existe! É ilusão cómica à la Corneille,
é espúrio sentimento em busca da salvação da solidão.

O que existe és tu. Existo eu, existem inúmeros seres
na multidão perambulando em inúmeras direcções.
Apanho o barco, o comboio e o metro para te salvar.
Mas não consegui. Já era tarde, os bares tinham fechado
à tua passagem. Parti umas garrafas contra o velho edifício,
só para poder soltar o meu frenesi intenso. Chorei baba
e ranho, dormitei na laje fria da estátua e acordei
aos primeiros chilreios dos pássaros.

Fui à tua procura. Em todas as caves nauseabundas
em todos os precipícios do mar, nas pontes
escanzeladas, mas nada. Só um fragor do teu olhar
e um abraço sonhado. Arrastei-me pela metrópole,
bebi cervejas sem parar, até que te vislumbro,
já sem esperança alguma, em redor das minhas
pernas, minha gata anódina e feliz, entaramelando
conversas com desconhecidos.

Minha gata, de seu nome Amor, famigerada e perversa calmaria
para as minhas dores de peito, meu remédio diário
a que não posso nunca falhar. Por favor, Amor:
- Não me fujas mais! Ela ronrona o seu charme
e quedamo-nos abrigados, na luxúria da noite
a fumar, a beber e a dizer poemas um ao outro.

19 de março de 2018

Border Line Train

Da ausência
de mim em mim

Encontro agora
a presença poética

incandescente
luminosa

em devaneios
sem fim

Deixei de escrever
porque nunca servi
para nada

a não ser
deambular por aí
em busca de mim

Estou na borda,
no limite da minha
vida

Sei que vou morrer
sozinho
e com contas por pagar

Mas antes disso
quero deixar os
meus livros

os meus discos
os meus gatos
e o meu coração

para ti.

24 de setembro de 2016

Da Condescendência

Miúdos ou graúdos
são tão divertidos
na condescendência
que se tem por eles

Para o escriba
é apenas o rumor
nauseabundo das
vivências em bando
Esfera particular
dos amiguismos
de café
e das memórias
de enxofre
ambos babam
e choram
à mais pequena
nega dada
E contentinhos vamos
na perífrase da solidão
e no trauma agudo
da falta de memória.

11 de maio de 2015

Deambulações Suíças 2014 - Dia I

Imagem 1 - Muro dos Reformadores, Genebra
Foi desta! Após uns anos de espera, aventurei-me ao que me faltava da Suíça para desbravar. Ainda ficou muito, é claro, mas pelo menos os principais lugares já foram descobertos, vistos, sentidos, cheirados. Andei no meio de gente, no meio das montanhas sem vivalma em redor, muita montanha, chuva copiosa, flocos de neve na manhã do primeiro dia de Setembro de 2014. E outras aventuras em modo solitário. Mas comecemos pelo princípio!
 
Lá se fez a viagem bem cedo de Lisboa para Genève, aquela cidade protestante onde professaram os grandes pensadores da reforma, como João Calvino, Guillaume Farel, João Knox (que era escocês) e Théodore de Bèze, o primeiro reitor da Academia de Genève, uma universidade protestante, criada em 1559 por estes quatro reformadores. Há um monumento gigantesco no Parc des Bastions, (um grande e belo jardim público) que foi criado no Séc. XX, em 1909, que se chama "O Muro da Reforma" com estes 4 cavalheiros. Além destes, destacar o grande filósofo Jean-jacques Rousseau, nascido em Genebra.


Imagem 2 -Os 3 Cantões que deram origem à Conf. Helvética









Genebra deve ser visitada por ter esse fluir citadino de uma cidade internacional, pois a França e a Alemanha ficam ali bem perto, há muita circulação de pessoas, bens, viaturas, dinheiros. Genebra é a sede dos organismos internacionais, cerca de 200 ligados à diplomacia mundial, sede europeia das Nações Unidas (ONU), da Cruz Vermelha Internacional, do CERN - Centro Europeu de Pesquisa Nuclear. Tudo isto se encontra no Palácio das Nações, com as bandeiras de todos os países no átrio principal. Não deixar de visitar o centro histórico, na margem Sul do Lago Léman (ou Lac Genève), com as casas antigas, as lojas de bairro muito chiques e caras, as igrejas e o Museu de Arte e História, tudo isto num ambiente do Século XVI, belo, onde se nota a influência Protestante, com as casas coloridas, as fontes com imagens pitorescas, os desenhos nas casas, nas tabuletas dos restaurantes e do comércio local, das guildas e corporações medievais. Respira-se história, respira-se cultura (onde acontecem diariamente eventos de todo o género, da música clássica ao rock, do cinema ao teatro, da dança às exposições).

Imagem 3 - Comboio Bernina Express . Património UNESCO
Embora já tivesse estado em Genebra, quis voltar e ver com mais calma. Também tomei banho finalmente no lago Léman, com muita gente a nadar por aquelas águas cristalinas e puras e nada frias, pelo menos para mim. Isto tudo a 27 de Agosto, dia da chegada à Confederação Helvética. Por falar nisso, comemoram-se em 2015 os 200 anos da entrada do Cantão de Genebra à Confederação. Volto a explicar, para quem ainda não sabe, que a Suíça é uma junção de estados confederados, que são os chamados Cantões. Existem 26 cantões na Suíça, em que os três primeiros que se juntaram (Schwyz, Uri e Unterwalden) no Prado de Rütli, a 1 de Agosto de 1291, em que juraram defender-se dos Habsburgos que mandavam naquela região. Foram estes três que assinaram o pacto de aliança mútua e deram origem à Confederação Helvética. Ainda hoje, o 1º de Agosto é o Dia Nacional da Suíça, onde se comemora a criação deste país. O cantão de Schwyz deu origem ao nome do país, Schweiz (Suíça). Não esquecer que nesta região e na maior parte do território se fala o alemão. Depois vem o Francês, depois o italiano na região mais a Sul, chamada Ticino e nas regiões montanhosas junto à Áustria e Liechtenstein, fala-se a minoritária lingua Romanche, uma mistura entre italiano e francês, pois vem do latim e por isso um português consegue entender muitas palavras. Concluindo este pedaço de história, de referir que a bandeira do cantão de Schwyz já era desde 1291, uma bandeira vermelha com uma pequena cruz branca do lado direito, que veio dar origem à bandeira nacional suíça. 
Posto isto, avancei finalmente para as minhas deambulações a sério, por locais que ainda não tinha passado nem pernoitado ou que já conhecia, mas mal. Para viajar pela Suíça, o comboio é o melhor meio, pois leva-te a todo o lado, sem atrasos, com ligações sempre rápidas e nunca esperas mais de 20 a 30 minutos por um comboio, excepto nas regiões mais isoladas, em que por vezes a ligação só é feita de hora a hora, mas com muita tranquilidade. Afinal estou a viajar para saborear o tempo e um outro país!
Com um passe suíço, pago por 8 dias, pude viajar em todos os comboios, autocarros e barcos nos lagos, subir alguns teleféricos históricos, visitar muitos museus gratuitamente. Outro meio é a bicicleta, que na Suíça é bastante utilizada, claro está. Depois, as caminhadas e passeios a pé, muita gente os faz, especialmente os mais velhos, pessoas reformadas. Um casal de mais de 80 anos veio comigo num desses comboios, tinham vindo das Montanhas do Oberland Bernense (a região interior e rural do Cantão de Berna, que é a Capital da Suíça, para quem não saiba), achei fantástico o espírito e pus-me a magicar se isso não tem tudo a ver com o início desta escrita: o facto de ter sido uma cidade influenciada pela reforma protestante, que alterou mentalidades, que criou academias e a vontade de conhecimento e cultura. É por ver estas coisas que acho que o catolicismo apostólico romano tem sido a fonte de muito atraso cultural, social, político e de mentalidades, claro está. Portanto, explora-se minuciosamente os locais, as montanhas a pé, sendo que para me deslocar e dar uma volta inteira à Suíça em 8 dias, só seria possível de comboio. Portanto, a caminho! Até já e boas viagens!




27 de fevereiro de 2015

Tacto

Hoje não conseguia dizer mais nada
Estava exausto o ser que tinha muito
sumo de humano. Olhava para os
demais com uma alegria contagiante,
mesmo que se condoesse com a
miséria e a injustiça por esse mundo
fora. Levava na sua bagagem esse
manancial de rotas, de paisagens,
mas sobretudo de pessoas de pele
e ossos. Uns, bem duros de roer, outros
na anódina e bonacheira truculência
das cartilagens por desbravar.

Apesar do cansaço no olhar, apesar de tudo e de todos
continuava a escrever e a tocar nos corpos de quem amava
e havia tantas estórias por contar, entre mulheres, crianças,
velhos e velhinhas, homens imaturos, homens egocêntricos,
homens boçais, homens animais, homens infiéis, a todos,
sem excepção, tentava tocar-lhes profundamente, sem
a mácula do desejo nacarado de moralismo. Apenas uma
chusma de sensibilidade e de tacto. Porque é de falta de tacto
que os homens têm falta. E a falta de tacto não lhes permite
vislumbrar esse sentido precioso dos afagos e da suavidade
dos abraços em magnéticos campos do sentir intenso, dizia ele.

Quando o cansaço por fim se apoderou da escrita
dormiu profundamente e sonhou

Ao relento da sua ensimesmada solidão.
(Ilustração de Nick Dewar)

31 de dezembro de 2014

Re Soluções

Para o próximo ano
espero estar vivo
e ficar vivo por mais uns

Resoluções são uma treta
é como fazer a cama:
não faz sentido se te
voltas a deitar outra vez

Repetir uma solução é inconsequente.
Se está solvido, para quê aplicar
mais soluto e mais solvente?

Qualquer repetição é pura aldrabice
amestrar o corpo e o olhar para
aquilo que se quer, de um modo
normalizado de viver

Desejo a vida inusitada e inverosímil
criação de mundos de aventuras
e nada de especial a expectar.
Porque o sumo está na singularidade
de um corpo livre, sem ameias,
disponível para a  novidade e a desordem.

Por isso me quedo na perífrase do sonho
e na melopeia sagaz da melancolia.

24 de dezembro de 2014

O meu Cérebro não tem Cor

O meu cérebro não tem cor
pressente os precipícios do mundo
e na diáfana modorra dos dias
hiberno na melancolia mais suave
do que um beijo delicodoce

Espera-me a morte e a desolação
dos livros inquietos, paisagens por
devorar na occipital certeza do fim

Da minha massa cinzenta
pasta gordurosa e insípida
apaguei todos os sorrisos
nos rostos condescendentes
e alarguei o prazo do universo
pútrida crosta em perene
transformação. Só eu me quedo
nas protuberâncias da carne
na destreza do olhar vivo.

Mas já risquei todas as cores
possíveis, deduzo que por pura
dolência, nos eflúvios do pranto
corre ainda, exangue, a linfa
da desilusão e da inquieta
mente em dissolução ácida
no fermento álacre da vida.

18 de julho de 2014

O Meu Amor não tem Fim

E sem saber porquê, vi-me na encruzilhada do teu rosto.
Repeti as mesmas frases vezes sem conta, porque a
professora mo tinha pedido. Deixar o calão dos dias
inseguros e prender-me à filologia das regras da boa
etiqueta do amor. Mas desisti de tudo isso, preferi
a sonâmbula aura da vagabundagem dos sonhos e
das matérias vis e pueris. Respiguei no lixo palavras
tóxicas e olhares nauseabundos que conspurcavam
todo o ar envolvente. Submeti-me ao silêncio e à
tão desejada e excitante solidão, esperma doce
e quente da luxúria prenhe das palavras.

Divaguei nesses dias pela tua casa, em busca de um gesto.
O teu corpo virando a esquina em surdina, um passo
rápido ao atravessar a passadeira, um pentear de cabelos,
um menear em volta da tua carteira, mas nada, escuridão.
Ia para casa cansado, agitado de não te ver, mas com
a esperança defronte do meu espelho quebrado. Um
dia destes tenho de arranjar coragem para comprar
um novo, mas que me permita ver o teu rosto, em
vez do meu, carcomido e gasto, velho de tanto ter
a ilusão de amar-te. Por hoje, escrevo num velho
caderno, a mesma frase que a professora me pedira.
Escrever sem erros, sem rasurar o passado e sem
imaginar o futuro. Escrever agora, cem vezes, ou
as mais que forem necessárias:

- O meu amor vê-se na distância em que te olho,
nos dias não-ditos, não sonhados. O meu amor
vê-se no sangue aberto a escorrer na calçada.
O meu amor vê-se na alma entregue ao mar.

O meu amor não tem fim, mas esta prosa, sim!
 

12 de abril de 2014

Gostas de Pedras e eu de Palavras

Gostas de pedras e eu de palavras.
Mesmo quando elas ressoam na
minha dolorosa cabeça que pensa.

Encontro-me agora soterrado na
diatribe exegética do amor em
estado fóssil de observação

e na orografia do teu olhar
encontro cumes íngremes
e vulcões ainda activos

ainda fumega a delicadeza
no teu olhar inquieto, a íris
recorta a paisagem com
a brandura dos sonhos
em que te metes e ainda
me pedes que faça o relato
fiel de todos os teus passos.

Gostaria das palavras, se fossem fáceis
mas as palavras são difíceis, meu amor
e falta tanto tempo para chegar ao cume,
onde se avista a paisagem da tua vida

Por agora, decifro no magma do teu sorriso
um desejo incandescente de percorrer a
cratera das dúvidas e dissipar as nuvens
pesadas do passado, chuva ácida na pele

No meu livro de horas, perscrutava sobre
as badanas dos silêncio e da morte em
goles suaves, para não afogar o encanto
do meu romance. O herói principal corria
desabridamente nas veredas do amor.

E eu, deixava-o deambular como um louco,
deixava que a personagem me tomasse e
passasse a ter vida própria, mais estimulante
e real que a minha. A caneta está a ficar sem
tinta e sinto que ainda tinha tanto para dizer.

Talvez no próximo capítulo fale do mar
e das rotas do vento, das enseadas de sonho
e dos cabos que recortam a costa arenosa.
Mas no preto desta tinta, já tenho de rasurar
várias vezes as palavras, que por isso ficam
gastas e grossas de tanto pisar nelas.

Fica-me a vontade...
oh! Acabou de vez a tinta!




 

31 de março de 2014

Do Amor em Visita Doméstica

É uma merda!
Não sei como chegar a ti.
Como dizer alto e bom som o que sinto.
Amo e desamo com a mesma bonomia do silêncio.

Carpo nas pedras da calçada as lágrimas do desassossego
perambulo nas avenidas em busca do teu vestido curto
e nasce-me outra vez a vontade de sair correndo para o campo

Eras jovem e eu um jovem imberbe, sem mácula
sem tempo. Sem hipocrisia na filigrana dos dias inquietos.
Mordia a espinha bífida dos afectos e soerguia-me na
nave occipital do desejo tentacular e brando

Chamaste-me pelo meu nome: Gentil.
Um poeta urbano e ensimesmado nas suas fantasias
e nos sonhos espúrios do quotidiano. Relva húmida
no teu coração suave. Beijei-te pela primeira vez
no dia em que tive pesadelos. Eram doces, os lábios.

E agora, vês-me todos os dias da tua bicicleta
em cima do terraço soalheiro. Do teu castelo,
avistas o horizonte pejado de sons e cheiros.
Vislumbras-me no lusco-fusco da derradeira
morte dos sentidos. Abraço-te longamente
ao derredor do teu corpo salgado e prenhe
de melancolia. Gracejas com os meus dedos
lambendo as feridas do  passado.

Afago os teus cabelos nestas mãos oblíquas
e gastas de tanto escrever. Permaneço calmo
no teu rosto e deixo-me cair no teu corpo
de sonho. E gosto de ficar assim eternamente.

Deitas-me na tua cama e finalmente
começo a sonhar contigo. Um corpo
perene, geográfico e possível.
Na possibilidade do amor.

Do amor em visita doméstica.



20 de fevereiro de 2014

Intensidez

Havia algo em ti que me emocionava.
Algo de grandioso. Um não sei quê
de diferença para as outras. Um
estatuto, só teu. Sem peneiras,
sem vaidades, apenas solidão.

Um mundo muito melancólico
- e tão luminoso! Encantei-me
logo desde o primeiro café.
A tua voz era decidida, grave,
como eu gosto, sem maneirismos
que me irritam profundamente.

Não tens certeza de nada, especialmente
do futuro. E ainda bem. Menos ansiedades
vives. Do passado também não tens
grandes memórias ou recordações.
Vives aqui, agora e dás-te por feliz
com isso. Sonhos, tens-nos às carradas!
Por isso continuas a andar sem pressa.

Não sei se ainda é tempo para te dizer,
mas as framboesas estão aí e quero
oferecer-te todas e colocá-las na tua
boca deliciosa. Uma a uma, languidamente,
sem passado, sem futuro, sem pressa.

Construindo contigo um silvestre aroma
delicodoce, sensível, profundo como
a terra dos teus olhos, vibrando com
a frugal intensidez dos teus braços.


6 de fevereiro de 2014

Vou Morrer
















Hoje é que foi! Disseram-me que ia morrer.
E eu acreditei. Finalmente me fizeram ver
o quanto andava enganado com as tolices
de super-herói imortal.

Foi um acordar para a vida! Perdão, um
acordar para a morte. Para a finitude e
o desembaraço. Consegui logo ali depois
de sair da audiência, elaborar variados
planos e estratagemas: viagens, jantares,
romances, beijos ao luar, banhos em
lugares distantes, carros de luxo,
comida gourmet, roupas de marca,
tudo o que de melhor poderia oferecer
a mim próprio.

Mas depois de tanto congeminar,
voltei, resoluto a casa e tomei
coragem para fazer o que devia
há já muito tempo!

E consegui, finalmente
limpar o pó à minha casa!

2 de fevereiro de 2014

Carta a Cristiana

Olá. Escrevo-te esta carta, para te agradecer pelos cabelos ao vento.
Para agradecer as palavras e a abertura da tua pequena caixa de Pandora.
Os teus males são os males do mundo. Os odores são a inquietação na mente.
A saliva tem o sabor salgado da melancolia. O corpo todo dói-te nas aventuras
em que te meteste, secretamente, deambulando por aí à procura do teu olhar focado.

Depois, dou-te um abraço na maresia teatral, ao abrires a minha porta de casa
e eu mostrar-te o meu cérebro, apinhado de livros, de paisagens e sonhos. Voltei
a entrar em cena, e a rabiscar mais uma peça de teatro. Colorindo cartas e amores
e voltando ao lugar dos ditongos e das alegrias. Corro agora para ti, ao fechar esta
simples missiva. Espero que os correios ainda estejam abertos e selar, por fim, o amor
às palavras, ao nevoeiro da existência, aos desertos do mundo. Parece que vai chover.

Não sei se tenho mais para te dizer. Sei que posso deitar-me nos teus braços e
que vais amparar a queda das lágrimas sempre que elas queiram voltar à vida.
Como gostaria de ter um cão que me lambesse as feridas nos joelhos. E a minha avó
está bem, graças a deus e ao Reumon Gel. O gato Simão manda miaus e a minha tia
quer-te cá em breve, para te ensinar a fazer crochet. Manias de tias, que se há-de fazer?

Despeço-me agora, minha irmã. Sem salamaleques nem pechisbeques. Olha, esta rimou!
Não tenho muito jeito para isto, as despedidas. Conto ver-te em breve, num jardim
iluminado só para os dois, com pedras na mão, para atirar ao mar. Do resto da história,
não contamos a ninguém. Os segredos são para se guardar na memória do universo.
Adeus, fica no coração das estrelas.
P.S. - Não digas à mãe que estou constipado!

16 de janeiro de 2014

Tempo

Já era tempo de dizeres alguma coisa! Já era tempo de responderes às inquietações do universo. Foi o tempo das amoras e dos lírios. Foi-se o tempo perdido na areia salgada da saudade. Ainda é o tempo dos sonhos e dos sorrisos. Ainda é a hora para o tempo dar tempo ao tempo. Ainda te escrevo para adiar o inevitável. A minha partida, ali como aqui. O desenlace de uma estória sem princípio, mas destinada a não ter fim. O tempo é uma ampulheta que escorre no coração dos amantes. O tempo não existe. É uma falácia libidinosa, para assistir ao engano de que estamos vivos.

16 de agosto de 2013

Na Tua Mão Esquerda

Na tua mão esquerda
a toranja sumarenta

os teus finos dedos
anunciam a primavera

e nas tuas veias
corre sangue doce

alegria no gesto
brando e soez

Calcorreias a mesa
em busca da faca

para cortar a casca
ao abacate quente

nas tuas unhas cortadas
há pedaços de fruta
carcomida do passado

Por fim
a tua mão direita
indica o silêncio

que fecha a minha boca
e abre o meu coração

frugal

10 de dezembro de 2012

Literatura a Cores

Prosa, literatura comestível em badanas inomináveis
vocábulos exegéticos e margens textuais da perífrase
no engodo da escrita, a silaba átona mais refinada
campos do hipertexto rodeados de sintaxe.

Hoje é o tempo das quadras. Natalícias as filhós
com recheio de abóbora. Menina, a moça das
tranças vermelhas. Rubro é o verso do amor,
a saudade uma pétala branca de melancolia.
Verde é a bile da raiva lacustre e mortal. A
esperança é um regato fresco e pastoril de
uma manhã clara de prazer. Ocre é a telúrica
savana do teu corpo. No arco-íris do desejo
um sol molhado de fonéticas apetecíveis.


28 de novembro de 2012

Nesse Lugar Secreto

Há nesse lugar secreto da solidão
uma esteira para o descanso dos
sentidos, pétala amarga e exangue
de um beijo petrificado de amor

Agora que regressas ao pó do deserto
para que a infâmia do teu corpo seja
finalmente expurgada do mal inquieto
que te acompanha, traças uma rota
indefinida, tacteando na areia a
morte mais que provável dos afectos

Foi nas dunas que sucumbiste ao calor
e nessa rarefacção das palavras só
conseguiste pronunciar um ditongo
coevo e audível na lisura da vida
Mal chegaste à filigrana dourada
do desejo e já partiste para uma
memória insípida da existência

Despedi-me com denodo e acenei
aos ventos do Suão até à próxima
visita em funestas deambulações
Enrolei a esteira e fiz-me ao mundo
O amor já fazia sentido na orla do mar

11 de novembro de 2012

Obituário

Perece lentamente o silêncio no habituário insalubre da saudade
Preces lentas no silente arbitrário e insensato do soldado
Parecem lentes silenciosas no hábito insano e salgado
Precedes lenta a selene e obituária insegurança da saúde

21 de outubro de 2012

Na Respiração das Palavras de Pina

Onde está a imagem do meu duplo?
Onde me revejo neste espelho convexo
que me atrai para a escuridão?

Que pergunta me pergunta a imensa solidão
da morte e da cegueira do olhar que me olha?
Que coração míope permite a síncope diastólica?

Onde estava eu, queridos amigos? - Onde estavas tu?
Perdido na erecção do mar? No tormento da tua nau
desabrigada e liquefazendo-se em vagas salgadas da memória?

Onde estávamos todos na tua morte? Onde estava a morte
na morte dos outros? Onde andava a Tia Miséria? A varrer o
chão de cinza e chumbo? Onde se abriga a morte? No teu coração?

Em que lábios gretados fluem sucos adstringentes e mortais?
Em que beijos e cantos do cisne encontraste a tua morte?
Em que canto do mundo existes, morte sincera e moribunda?

Em que perguntas me perdi? Em que espelho côncavo me
iluminei e descobri? Em que matéria decomposta me transformei?
O que temo agora, já que a vida me fez morrer com prazer?

19 de outubro de 2012

Quando Morre um Poeta

Quando morre um poeta
fecham-se as palavras
como que envergonhadas
da sua serena solidão

As palavras, esse enigma do mundo,
balbuciam ao poeta a claridade
do momento de inebriamento
dos sentidos da vida fugaz

Mas é na morte que as palavras
se escondem, para recomeçarem
o seu uso na ancestral memória
dos caminhos por desbravar

Os poetas, esses criadores de mundos,
murmuram às palavras sonhos pela
madrugada fora, o desejo da eterna
mácula nos livros de desavergonhada

existência.


Para Manuel António Pina

11 de setembro de 2012

Um Só Nome

Acabou de se publicar
em caracteres Garamond
a biografia de um condenado

Fora condenado à vida
no silêncio das palavras
inquietas, em Garamond

Num papel couché de 80 gramas
liquefaz-se a existência da vida míope

andamos todos a brincar com o mundo
e a morte - sempre ela em meu redor -
para nos consignar à solidão do parágrafo.

Obra terminada. Fica agora no prelo
à espera de capa, ilustração, e um nome:
Um só nome para o título. Do autor

não reza a história. Na lombada, a tua
mão doce, que acaricia o futuro. Um
livro feito com palavras imperfeitas.

10 de setembro de 2012

Aqui Jazz

No meio dos escombros do teu olhar
a sinfonia maculada da morte. Finíssimos
espectros da medusa insalubre e sonsa.

Caíste de borco e em silêncio na praceta
dos fiéis defuntos. A tua solidariedade com
os pobres sempre foi nauseabunda.

Fiquei atónito perante as pétalas arrancadas
e atiradas para o charco plúmbeo dos
teus olhos. Fizeste-a bonita ao deixares
os papéis do IRS por preencher. Agora
o fisco, que vela por nós, vai condenar-te
ao inferno dos sempre revoltados e oprimidos.

Aqui jazz uma melopeia breve, cinco minutos
de piano, bateria e baixo. O teu sorriso, agora
esfacelado num esgar de dor e ciúme.

Por cima da urna, os votos de boas frestas.

14 de junho de 2012

Carta de Recomendação

Falo muito sobre o meu país. Valorizo-o, especialmente no que concerne à Cultura, aos nossos fazedores de arte. Gosto muito de Portugal, pelas suas diferenças regionais, pelas paisagens, pela gastronomia, pelo clima, pelas gentes. Mas como é óbvio, não por toda a gente. Há muita gente que tem um pensamento demasiadamente conservador, atrasado, passadista. Não gosto. Como não gosto da corrupção instalada, das cunhas, dos interesses, de uma série de gente com pequenos e grandes poderes instalados e podres. Que fedem, que dão-me raiva. Fazem-me ter vontade de estoirar com eles, com os poderes e essas pessoas. Torno-me muito violento, apetece-me partir tudo. Porque não me conformo, porque estou sempre do lado dos pequenos, dos oprimidos, dos pobres. Porque também o sou: pobre. Mas gosto de lutar, gosto de olhar para o lado, para os outros, ter uma noção ampla do que por aqui se passa. E não gosto do conformismo das pessoas. Não gosto da apatia, de rir fora de tempo. A arte do humor é a mais difícil, pois tem um ritmo muito próprio e definido. Não podes passar esse tempo, senão quebras tudo. O mesmo se passa connosco. Não podemos deixar-nos levar pela bonomia, pelo facilitismo dos dias. Temos de ser exigentes. Connosco e com os outros. Faz-nos falta. Não gosto desta maneira de ser lusitana, em deixar as coisas ir andando. Gosto de pôr termo às coisas: a um trabalho, a despachar uma tarefa, a dizer o que penso, a formar a minha opinião, a ser crítico e directo, sempre respeitando a opinião do outro, mas nunca temendo a minha visão. Espírito crítico, sensível, falta-nos. Falta-nos rigor. Falta-nos cumprir o estipulado, cumprir com a palavra dada, com os horários. Falta-nos um país justo e equilibrado socialmente. Não gosto desta sociedade injusta e com ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, cavando este fosso nauseabundo e perverso. Falta-nos políticos competentes e que trabalham em prol das pessoas, da democracia. Falta-nos um país equilibrado entre o litoral e o interior. Não gosto de um país com realidades muito diferentes e em que o interior é desprezado, esquecido, posto de lado. É setenta por cento do território nacional! Como é possível? Terras magníficas, com condições naturais óptimas para o trabalho, para se viver, para o turismo, para a qualidade de vida, para a felicidade e temos isto? Não se sentem envergonhados? Eu sinto-me, apesar de não ter culpa e ser contrário ao encerramento de centros de saúde, hospitais, maternidades, postos de correios, tribunais, freguesias, estações de comboio, fábricas, projectos. Sou a favor de um país regionalizado, dividido em regiões, que poderiam canalizar os dinheiros bem melhor, com pessoas da região, que a conheçam bem. Todos os países evoluídos e da Europa, possuem regiões e as coisas funcionam bem melhor do que aqui. Sou também a favor do envolvimento directo das pessoas na participação directa em votações de vária espécie, os chamados referendos. Poder votar se quero manter aquele mercado ou não, se na minha região quero valorizar o turismo ou as indústrias criativas. Se queremos ou não touradas. Isto sim, seria um país mais justo, mais equilibrado, com participação cívica elevada. Isto claro, se as pessoas votarem. Eis outro problema, coisa que não gosto. As pessoas não votam, não se envolvem, desistem. Quarenta por cento de abstenção. Se julgam que estão a dar um sinal contra os políticos, pelo contrário, são os responsáveis por serem os mesmos a vencer, as mesmas caras a mandar nas vossas vidas, vós que desististes de poder ser representados por aquele que mais se identificam. Assim, permitem que qualquer um mande em vós. E vós calais e gostais. Se reclamais, é sintomático do espírito atrasado e estúpido, desculpem a sinceridade, de ser e agir perante o mundo e os outros. Reclamar fora de horas, a destempo, não serve de nada. É apenas ruído. E desse já temos em barda no nosso país. Não gosto de ver as pessoas atirarem beatas e pastilhas elásticas ao chão. Não gosto de ver pessoas atirar lixo à rua, o que ainda se vê com alguma frequência. Não gosto de ver as nossas zonas costeiras degradadas, sem estarem limpas. O mesmo com as zonas agrícolas e florestais, sujas, com as sebes altas, o chão cheio de matérias secas e potencialmente combustíveis, que causam ano após ano os incêndios, além claro, dos fogos postos por lunáticos, atrasados mentais, criminosos, pessoas com interesses. Mas os incêndios não são fatalidade. Poderiam ser combatidos, o ano inteiro, limpando as matas, criando zonas corta-fogos, tendo vigilância, tendo os proprietários como responsáveis máximos dos terrenos, mantendo-os limpos e sempre vigiados. Poderíamos ter rios mais limpos, mais saudáveis, se as empresas, as explorações agrícolas fossem controladas, tivessem multas brutais sempre que prevaricassem. Poderíamos controlar os assaltos, os roubos, esta criminalidade se os prevaricadores fossem punidos e soubessem que o sistema judicial os não libertava por tuta e meia. Porque me dá raiva o pequeno ou o grande roubo. Não sou a favor de uma sociedade baseada no medo e na segurança, mas falta-nos mão mais rígida, o que não é o mesmo que ser pesada. A rigidez tem a ver com o criminoso saber que ao estar perante a justiça, vai ter problemas, que o castigo é uma consequência do crime. E há tantos modos de castigar. Há o serviço cívico, há trabalhos pesados, há a correcção prisional e não como a actual pousada prisional. Não gosto do rumo da nossa educação. Do facilitismo. Da dificuldade de vida dos professores, desamparados e isolados socialmente. Uma profissão basilar e que mantinha um respeito, pelo menos para quem interessa, os alunos e os pais, foi sendo desvalorizada que hoje é olhada de soslaio. Um professor é um burocrata, trata de papéis e depois tem de aturar miúdos indisciplinados, que pensam mais em jogos, em computadores que nas aulas, nas matérias a aprender. Valoriza-se o primado do indivíduo egoísta, preguiçoso e presunçoso. Ao invés, os que se aplicam, os que estudam, são gozados pelos colegas, sofrem bullying, são escorraçados. Mas felizmente que ainda os há, são o futuro deste país. Nem quero alongar-me no ensino superior. Mas tenho notado um baixar de nível, de conhecimentos. Conheço muitos jovens no superior ou com cursos concluídos e com falhas graves de cultura geral, de escrita, oralmente não conseguem manter uma conversa minimamente estimulante do ponto de vista intelectual. Tornam-se especialistas na sua área de estudo e do resto, pouco sabem, pouco procuram interessar-se em outros mundos do saber. Claro que há excepções e ainda bem. E um dos grandes problemas de alguns jovens em relação ao futuro é esse saber limitado e que os fez acreditar que a especialização é que é. Pelo contrário, um saber global e alargado, como preconizavam os homens do Renascimento, é mais proveitoso e abre mais possibilidade de escolha para uma profissão, para trabalhar em áreas diferentes, para abrir o leque de oportunidades e de projectos de vida. Precisávamos de ter um sistema que voltasse a respeitar o Professor, em que pais e alunos sentissem ali um mestre, um educador cívico, social, político e de saber partilhado. Com mais educação, ou instrução como também podemos dizer, teremos sociedades mais justas, porque mais despertas civicamente, com consciência social mais elevada, o que se reflecte depois na consciência política, familiar, de relação e geracional. A educação é a base do conhecimento e da cultura. Seres instruídos e estimulados desde cedo para as artes e a cultura num sentido lato, o mesmo para a filosofia, o pensamento crítico e estético; serão desde cedo público atento e fazedor de cultura, vendo espectáculos, participando e fazendo arte. Numa sociedade justa e avançada, a cultura faz parte integrante de qualquer ser, a cultura abrange todos os estratos, todas as idades, todos os credos, todos os meios físicos. A cultura é respeitada e estimulada pelos governos, pelas autarquias, pelas empresas, pelos privados. O mecenato será bastante difundido, as empresas terão todo o envolvimento e serão reconhecidas por esse envolvimento. Serão empresas com alto valor cívico e socialmente responsáveis, onde apetece comprar e investir, consequentemente como cidadão, nessa empresa, nos seus produtos. É isto que sinto falta no meu país. É nisto por que me tenho batido ao longo dos anos. Mas é neste país que não tenho visto mudanças, muito poucas para quem quer tanto. Para quem é exigente. Culpa minha de ser assim, talvez. Inquietação a mais, dizem os mais brandos e felizes. É neste país que tenho visto a diminuição de salários, de regalias sociais, de qualidade de vida, de pessoas bem-formadas e o aumento de medidas políticas injustas,  de políticos corruptos, de diferenças sociais, de poder de compra, de insegurança, de desemprego, de depressões, de solidão. 
É este país, que tanto amo e por quem me tenho batido, que vou ter de sair. Ir-me embora. Não porque alguém disse que o melhor era emigrar. Estudei demasiado tempo para seguir vozes de burro, que nunca chegam ao céu, já dizia o provérbio popular. Não pelos outros, mas por mim. É uma vontade, um desejo, de procurar algo melhor. E desculpem, mas não é difícil. Não é difícil encontrar países mais justos, embora seja sempre difícil a integração inicial. Mas sempre me senti um cidadão do mundo, sempre gostei de viajar e mais do que isso, conhecer e respeitar o outro. Conhecer o povo, a história, o clima, a geografia, a política, a sociedade do país de acolhimento. E esse trabalho já foi feito. Já estudei bastante, como sempre. Nada se faz por acaso e não costumo tomar medidas extemporaneamente. As ideias, as vontades, andaram a moer-me a cabeça, há anos. Desde o momento em que se descobrem novas realidades, e que ainda por cima essas realidades fazem indagar-nos acerca da possibilidade e do quanto nos revemos em certos lugares, países, pessoas. E assim, se solidificou esta ideia. Como sempre, para mim o penso, demasiado tarde. Sempre fui muito serôdio, as minhas colheitas e decisões demoram sempre mais que o razoável. Defeito meu, aguentar ao máximo o barco já cheio de água, mais ainda ter na mão um balde para vazar o excesso. Sim, estou farto desta nau, o que não implica estar farto da tripulação da mesma. Tem a ver com a viagem. Quem deambula muito, tem sempre vontade em experimentar o barco que vai em sentido contrário. Como diria o António Variações, estou bem aonde não estou, porque eu só quero ir aonde não estou. Pode ser que um dia me farte do sítio onde ainda não estou e deseje ardentemente onde agora estou. Para já, é tempo de desaguar neste tempo, nesta escrita fácil, pois de tanto tempo e memórias acumuladas, é fácil discorrer sobre a realidade que me envolve. Fora isso, não há tristeza alguma. Pelo contrário, como bom português, há sempre o desejo da descoberta, do conquistar novos mundos, no meu caso, conquistar o meu pequeno mundo de sonhos e utopias. Talvez um dia possa criar essa Ilha da Utopia como Thomas Moore sonhou e vos possa convidar a todos para um mundo melhor. Até lá, saúde, beijinhos e boas partilhas. Vamos continuar a falar-nos por aqui! Sem medos, com vontade de mudar a estória da nossa História actual! 

5 de maio de 2012

Li-ber-da-de


Uma nova era que transforma o infinito em mar salgado do desespero. Na cama dos amantes há um bafo quente de miséria e solidão. Cais no precipício primordial do mundo e socorres-te da paisagem nublada para a morte antecipada do amor. Era o tempo em que as estrelas sabiam a doce e o amante, figura pálida e seminal, acorda de um sonho profundo, na liberdade angustiante de um beijo. Percorreu as ruas, que estavam despidas de gente e deitou-se na gravilha branda da saudade. Só lhe apetecia chorar na sua ensimesmada dúvida existencial. Morreria agora, ou alcançaria finalmente o zénite da pureza. A noite chegara e as nuvens adensaram-se num pranto incomensurável. No outro lado da vida, a amante dilacerava cebolas em barda, para poder lacrimejar sem pejo na amargura do silêncio, daquele silêncio nauseabundo e aromático. Separados à nascença, o choro e o riso aguçaram-lhes a vontade de exteriorizarem as emoções, sem medo ou culpa, sem o derredor da infâmia. Pátria calada nos sumiços da verdade, ensanguentada virtude nas guerras ultramarinas, vício e sexo na oralidade fragmentada da escravidão, lastro de ditadura na madeira carcomida do poder. Essa música inquieta e perturbante, fulmina como um raio de luz, uma ocre diatribe nas mentes recolectoras da ânsia de uma vida finalmente nova e feliz. E escavam a manta de retalhos do pútrido afecto determinista da existência, querem um novo ciclo de amor e morte. Sempre de mãos dadas, os amantes reconciliam-se na espera hospitalar dos condenados, pacientes inquietos de desejo e loucura. O obsessivo passo é feito nas montanhas e nos rios, desagua freneticamente na dor da escolha, fertiliza o nascer do prazer nas lezírias plácidas da liberdade. Que fazer agora, dizia o poeta, com as palavras à solta, como crianças rebolando na erva doce do futuro? Sujando letra a letra o tenro corpo diabólico e doce? Vocábulo a vocábulo se fez a perífrase do amor, finalmente pudemos arrumar as botas cardadas que nos exilavam na vida amordaçada e inconsequente. Por agora, finalmente, juntar as sílabas e partilhar a alegria da fealdade pairando nas nuvens da imaginação.

13 de abril de 2012

Ex-Citação

Não sou mais do mesmo, porque a cada dia que passa não sou mais o mesmo.

26 de março de 2012

Mensagem do Dia Mundial do Teatro 2012 por John Malkovich

"Sinto-me honrado por ter sido convidado pelo Instituto Internacional de Teatro (ITI), órgão da UNESCO, para escrever esta mensagem, na comemoração do 50º aniversário do Dia Mundial do Teatro. Vou tecer os meus breves comentários aos meus companheiros trabalhadores de teatro, colegas e camaradas:

- Que a vossa arte seja atraente e original. 
- Que ela seja profunda, comovente, contemplativa e única. 
- Que ela nos possa ajudar a reflectir sobre a questão do que significa hoje o ser humano, e como essa reflexão pode ser acompanhada com o coração, a sinceridade, a franqueza e a graça. 
- Que possam superar a adversidade, a censura, a pobreza e o niilismo, como muitos de vós certamente terão de o fazer. 
- Que sejam abençoados com o talento e o rigor para nos ensinar sobre o bater do coração em toda a sua complexidade, e a humildade e curiosidade para fazer o trabalho das vossas vidas. 
E que o melhor de vós - para cada um será o melhor de si, e mesmo assim só nos momentos mais raros e mais breves - ter sucesso na hora de pensar a mais básica das perguntas: "Como é que vamos viver?" 
 Merda!!!

John Malkovich

(adaptação minha, a partir de uma tradução brasileira)

11 de março de 2012

Quadras Soltas

Uma súbita dor cava na mental exigência de se ser
ficar tolhido na casa de Inverno do luto de te ter
uma agonia assaz profícua no cerebelo da memória
prender as amarras do meu cais no teu barco ancorado

Andar de peito erguido e braço ao vento, levantado
para as musculaturas daquilo em que acreditamos
e exasperados pela noctívaga estação dos sentimentos
arrastamos a perfídia na saliva infinita das preces ruidosas

Ficar dorido no chão depois das botas cardadas
pisarem toda a aventura do acreditar em nós
ilusões imperfeitas, mas puras na raiva à solta
pelas pedras da calçada suja, cuspida e sangrada

E por lá ficamos, exangues, a estancar a solidão
sem remorso nem dúvidas do percurso traçado
mas inquietos pois é hora de levantar de novo
e soerguermo-nos na rua larga da esperança

Abraças-me e de seguida dás-me um beijo
prenhe de sangue, suor e sal. Um juramento
de irmãos na melodia agora doce do futuro.
Caminhamos agora sem rumo, silêncio afora.